Manhã

“Manhã” é o mais recente projeto do Grupo Domo Teatro. Este trabalho tem muito a dizer, pois que aborda, em formas delicadas e arrojadas, as nuances de nosso tempo, em algumas das grandes questões que sempre permearam a busca humana por auto-conhecimento: o amor, a psique, as relações em suas variadas formas. Amor por si e por outrem, em processo de descoberta, de maturação, de aprofundamento. Estas questões, como pano de fundo, tratam daquele tema ainda maior (o de se ser, humano), que o Grupo Domo sempre retoma em suas montagens sob os mais diversos prismas. Tema que entrelaça nossa experiência como seres conscientes e em transformação, em aprendizado, seja como indivíduo ou como sociedade, e tece a teia de nossa contribuição em passagem pelo maravilhoso planeta Terra.

“Manhã” é o reflexo de todos estes anos de trabalho do Grupo (e já se vão mais de vinte anos), por portar a responsabilidade em materializar aspectos importantes em termos de estudo e composição cênica, da boa interpretação, de uma união harmônica e dinâmica da partitura que rege uma encenação. O Grupo Domo pode se dar ao luxo de não se sentir preso a formas pré-estabelecidas ou receitas de efeitos, assim podendo usar ou não velhos conhecidos clichês, porque acredita que cada trabalho, ou seja, cada obra de arte produzida, quando legítima, transcende conceitos habituais (ou revela o habitual, digamos, com poder de aumentar a percepção do corriqueiro).

A peça propriamente dita é roteirizada a partir de pontos de vista sobre a vida como ela se apresenta, as emoções e conflitos ao nos depararmos com nosso complexo mundo interior, em choque com nosso complexo mundo exterior. De dentro, da alma, do espírito, passando pelo corpo, e enfim, chegando às relações com o outro e indo em direção ao sem-f im de vida e de experiência que nos aguarda. Esse circuito interior-exterior tem, como ponte de ligação, essa personagem, que interconecta esses mundos. Essa personagem representa uma pessoa, comum, uma pessoa do todo-dia, que trabalha, que se relaciona, que tem amigos, que tem desafetos, que tem salário, que se vê frente às supostas evoluções de moral e conceito e tecnologia de nossa sociedade, e de repente tem uma epifania sobre o sentido das coisas. Todo o movimento da peça se passa durante um período de doze horas (a peça tem cerca de uma hora e quarenta minutos), o fim de um dia, até o começo de outro (numa simbologia de renovação constante, de mudanças que, querendo ou não, estamos todos expostos), até o amanhecer, que traz a Luz renovada, a claridade e a possibilidade de fazer e ser o novo, ainda que outros já o tenham feito.

Nessa longa madrugada, acontece a catarse de si, do abrir e sacudir a poeira das gavetas mais recônditas da personalidade, onde guardamos até o que não queremos ver de nós mesmos. Em nossas projeções de si mesmo sobre o mundo temos a tendência de romantizar ou estigmatizar o que somos, e a peça trata de fato da liberdade que temos para ser, para além dos desejos alheios e das regras impostas. Trazemos a mensagem ( apesar de muitos grupos terem receio de dizer que querem trazer uma mensagem, mas nós não temos), de que a humanidade é múltipla e bela demais. Esta peça é, sim, uma peça de final feliz! Porque abre nosso coração para sermos disciplinados, porém, gentis consigo mesmos. Esta peça quer rememorar as pessoas de que são muito capazes, que elas não são apenas o seu trabalho, o seu casamento ou relação, que não são uma forma inerte apenas obedecendo ao que supostamente deveriam ser, com todo seu ciclo de vida pré-estabelecido e aguardando a morte. Mas são livres, livres para construir sua história, e que quando exercem essa liberdade com amor pela vida, a vida muda, porque agente muda a forma de vê-la.

Na peça esse desafio de se abrir é mostrado de diversas formas, desde a relação amorosa entre dois homens (o que nos dá um ponto de partida factível e interessante, visto que é um elemento provocador de sentimentos ainda fortes e antagônicos em nossa sociedade, gera discussão), até um vasto campo de formas de contato que conectam as pessoas, seja o meio virtual, seja o familiar, seja nossa relação com a sociedade ou com as ciências. A peça não é sobre relações não-heterossexuais, nem sobre relacionamentos de casal, apesar de conter este elemento como propulsor de diversos questionamentos levantados.

Este é um espetáculo que, por exemplo, apesar de conter recursos relativamente sofisticados de cenografia, está centrado na pureza da interpretação e da boa capacidade de atores para conduzir o público a uma jornada emotiva, sem perder o fio condutor narrativo. Pode parecer uma catarse ao público, mas para o meio técnico, cada cena tem que ser muito precisa e fluida para se realizar em plenitude. Precisa no movimento e no domínio dos ritmos, fluida para suportar a novidade de cada público em relação direta com o tema. Usamos uma linguagem naturalista e simples, assim como um cenário e indumentária aparentemente simples e clean, para que as nuances de interpretação fiquem mais expostas. Dizemos aqui que é aparentemente simples, porque de fato em termos de concepção cada detalhe da montagem passou por profunda análise e estudo, e assim a escolha de cada objeto de cena, cada cor e cada tipo de luz estão em ativa consonância, não como elementos diversos sendo empurrados a trabalharem juntos, mas como complementos entrelaçados de uma obra que se faz inteira no equilíbrio entre as partes.

No palco, apenas um pequeno apartamento, delimitado por um quadrado, uma planta-baixa no chão. Um quarto-sala-cozinha-banheiro-varanda onde tantos e tantos moram hoje em dia. A cor branca predomina nos elementos maiores e na indumentária, sendo o fator Cor, relacionado a detalhes que na composição entram para isso mesmo, dar cor e sabor ao que não é visto, às sensações e emoções. A luz é operada de forma a criar ambientes emotivos, reforçar o que é interno e não apenas decorar o externo. Sobre todo o cenário, divisórias móveis que ajudam a delimitar os espaços quando necessário, comprimindo e expandindo conforme as necessidades internas de extravasar uma idéia. A música entra nesta fórmula com o mesmo princípio, esconder e revelar. Este jogo de mostra-esconde dá dinamismo e ritmo a uma boa encenação.

Um projetor também é usado introduzindo o elemento de vídeo, para projetar sobre o mundo real o sonho ou as memórias, aquelas coisas guardadas onde nem sempre estão ao alcance do outro, mas podem ser rebobinadas e revistas silenciosamente entre palavras e atos.

Como motores silenciosos dos estados de cena, os dois atores principais são auxiliados por dois atores “fantasmas”, duas figuras cobertas de branco dos pés a cabeça, que movimentam a estrutura cenográfica e os objetos de cena, que auxiliam na disposição do estado das coisas no palco, agindo como kokkens ocidentalizados (aqueles auxiliares de cena “invisíveis” no teatro oriental).

Em torno desta estrutura, como já é de experiência do Grupo, outras formas de arte são estimuladas e motivadas, com trabalhos fotográficos artísticos revelando o mundo interior da peça, os estados das personagens em suas vidas, as pesquisas de imagem sobre os temas que envolvem a realização do espetáculo, assim como trabalho plástico e croquis, esboços e story board do trabalho realizado. Assim em complemento com a peça estamos preparando uma exposição e um livro deste material, abrindo a possibilidade de um entendimento maior por parte do público à respeito da complexidade que envolve a realização de um espetáculo desse escalão.

Na fase de montagem profissionais de dança, preparação corporal e vocal, de cinema, de artes plásticas e fotografia, além de pensadores de diversas áreas trabalharam juntos para tornar “Manhã” mais uma importante realização do Grupo Domo, numa contribuição contínua de duas décadas de teatro. Na fase de apresentações veio a concretização deste sonho, que se iniciou entre os anos 2000 e 2001 (durante estada do Grupo na Europa), e a abertura de possibilidades de intercâmbio com outros artistas e com a sociedade, seja em forma de apresentações, de debates e/ou de oficinas sobre as técnicas empregadas pelo Grupo Domo para tornar o seu teatro o que ele é.

Nosso interesse legítimo é de produzir um teatro interessante, reflexivo, profissional (no sentido da seriedade empregada), artístico e comprometido com uma integridade que só os verdadeiros criadores podem realizar. O Grupo Domo intenta poder estar cada vez mais ativo na vida cultural de nosso país, mantendo sua proposta original, tão aberta e tão possível quanto vemos ser ao executarmos cada novo trabalho, e também ao mesmo tempo tão comprometidos com uma natureza brutal e vigorosa que o teatro tem em sua essência.

O espetáculo Manhã estreou em Brasília, no ano de 2013, e já foi assistido por mais de 3 mil pessoas. Tendo sido contemplado com o Prêmio FUNARTE Mirian Muniz em 2012 e com patrocínio do Fundo de Apoio à Cultura do DF, o espetáculo passou pelas capitais Porto Alegre, Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Belém e Florianópolis. A peça também foi selecionada para o festival nacional de teatro de Taubaté, recebendo cinco indicações a prêmios: melhor texto, melhor diretor, melhor figurino, melhor ator coadjuvante (Leudo Lima) e melhor ator revelação (Guilherme Victor). Também foi selecionado para o Festival de Teatro de Araçatuba (Troféu Festara 2013) e participou de mostras do SESC e da Funarte (FestFac).

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